Nosso Seiscentismo

Nosso Seiscentismo

por Evaldo Cabral de Mello (Historiador)

Na história européia, seria difícil encontrar séculos sucessivos tão díspares como o XVI e o XVII. O primeiro é o século de ouro do Renascimento e do crescimento sem paralelo da economia ocidental, o ouro, o “século de ferro”, como já o chamara Cervantes no umbral da depressão centenária que se iniciava quando ele publicou o D. Quixote. O contraste reproduziu-se na história brasileira, para não falar na hispano-americana.

Fernand Braudel observou certa vez que “a partir de meados do século XVII, tudo se passa, exagerando-se um pouco, como se a América tivesse sido abandonada pela Europa e entregue a seu novo destino, autônomo, meio europeu, meio indígena, obrigada a viver de si mesma ou quase, neste século que, segundo a belíssima fórmula de German Arciniegas, seria a Idade Média americana”.

Caberia indagar inversamente se não terá sido a América que começou a se introverter mais do que a Europa que começou a abandoná-la. O fenômeno, aliás, antecipou-se na América espanhola. A partir do derradeiro decênio de quinhentos, com a crise da produção mineradora, uma economia de “plantação”, isto é, de unidades especializadas na produção de artigos para o mercado internacional, foi paulatinamente substituída por uma economia de “fazenda”, vale dizer, de unidades especializadas no fornecimento de víveres às áreas mineradoras e aos núcleos urbanos coloniais. As exportações da Espanha para a América, que em quinhentos haviam sido principalmente de produtos agrícolas, passaram a ser de bens manufaturados. Destarte, a economia da metrópole e a da colônia deixaram de ser complementares, tornando-se competitivas. No plano cultural, o século XVII, no México como no Peru, assiste às primeiras afirmações de “criollismo”, inclusive à descoberta e à valorização da herança indígena promovida pelos próprios descendentes de espanhóis. Na América portuguesa, esse processo ocorreria com algum atraso, devido inclusive ao fato de que, entre nós, e ao longo de quinhentos, a colonização concentrar-se no litoral, ao passo que na América espanhola ela ocupará de entrada os altiplanos ricos de metais preciosos. Braudel também inventou a expressão “o longo século XVI”, que criou o precedente para alongamentos e encurtamentos cronológicos que fazem atualmente grande sucesso, como o que já fala no “curto século XX”. O grande historiador francês queria dizer que o crescimento econômico e demográfico da Europa de quinhentos prolongara-se pelos dois primeiros decênios da centúria seguinte. Periodização que é, inclusive, válida para nós, quando se leva em conta que, em resposta ao que se passava na Europa, a fase inaugural de desenvolvimento da economia açucareira, setor então hegemônico da economia colonial, perdeu o fôlego herdado de quinhentos, aí pela altura de 1620, às vésperas do ataque neerlandês ao Brasil.

A quem perpassa as páginas dos cronistas, é irresistível a impressão de otimismo que transmite nosso quinhentismo. Se decolarmos da altura em que eles escreveram e aterrisarmos nos últimos anos de seiscentos, é sensível o contraste entre o estado de espírito das primeiras gerações de colonos e o de seus descendentes mazombos. Enquanto uns haviam respirado euforia, os outros acabrunham-se. Dessa tristeza coletiva dá testemunho inclusive a acepção que a palavra “mazombo”, de origem africana e que fora inicialmente usada no Brasil para designar o filho do português nascido na terra, viria a tomar em Portugal, a de indivíduo soturno e macambúzio. Et pour cause. O século XVII foi o século mais ingrato, numa trajetória quadrissecular pouco invejável. Eminentemente contraditório, ao passo que, nas “capitanias de cima”, víamos a ocupação encetada pela nação, os Países Baixos, que estava na dianteira do processo de desenvolvimento capitalista do Ocidente, nas “capitanias de baixo” e no Estado do Maranhão, os colonos portugueses achavam-se na contingência de ceder às condições do meio físico e social, isto é, de aceitar a experiência de um retrocesso cultural. À raiz da descoberta do Mundo Novo e da aspiração a criar deste lado do Atlântico uma Nova Lusitânia, seus antecessores do primeiro século haviam vivido uma espécie de Idade da Inocência, reputando-se o prolongamento americano de Portugal, ignorantes da sua própria condição de colonos e considerando-se tão castiçamente protugueses quanto quem mais o fosse no Minho ou nas Beiras, regiões de onde provinha, aliás, a maioria deles. Não se sabendo colonos, eles ainda não se podiam imaginar como opostos, pelas idéias ou pelos interesses, a seus contemporâneos do Reino.

Por mais louvada que fosse, em comparação com a da metrópole, a realidade da nova terra, embora encarada como diferente, não era vista como irredutível aos modelos de vida material e mental trazidos pelos colonos, mas como uma página em branco, a que se podia facilmente apor o selo da lusitanidade. Foi assim que a modalidade inicialmente assumida pelo sentimento local não consistiu, como ocorrerá depois, na afirmação da individualidade do Brasil, mas, ao contrário, na reiterada asserção da feição lusa que já caracterizaria a existência colonial nos seus núcleos principais. Isso se verificou inclusive ou, antes, sobretudo, em Pernambuco, onde o sentimento nativista virá, do século XVII em diante, a manifestar-se mais virulentamente que em qualquer outra parte da América portuguesa, o que parece paradoxal em vista do fato de que a capitania orgulhara-se de ser a Nova Lusitânia, vale dizer, a região mais profundamente marcada pelo cunho da metrópole. Uma coisa, aliás talvez tenha a ver com a outra. Inebriados pelos fumos de uma originalidade nacional, que, na verdade, é de invenção recente, os brasileiros deste final de século XX tendemos a esquecer que se a “identidade” do Brasil, como se costuma dizer com uma palavra pessimamente escolhida, de ranço metafísico, veio finalmente a se afirmar, este processo não constituiu algo que estivesse inscrito inapelavelmente na ordem das coisas, como se fosse a atualização de uma Idéia, assim mesmo com maiúscula, no sentido hegeliano. Ele levou muito mais tempo do que supomos, verificando-se, em todo o caso, a contrapelo do que haviam sonhado os colonos quinhentistas.

Ao longo de seiscentos, iniciou-se o ensimesmamento da América portuguesa. Uma visão superficial poderia associar o fenômeno à própria existência do monopólio colonial que, por definição, segregava o Brasil do mundo. Na realidade, o processo parece ter sido bem mais complexo. Em primeiro lugar, o monopólio já vigia no século XVI e, contudo, a colônia exibia uma fachada de cosmopolitismo que lhe advinha não só da superioridade numérica dos contingentes demográficos procedentes do Reino, mas da presença, estimulada pelo açúcar, do comércio e da navegação do norte da Europa. Em segundo lugar, a introversão brasileira verifica-se igualmente no tocante à própria metrópole. Na realidade, na América espanhola como na portuguesa, esse processo resultou da ruptura do equilíbrio entre a economia de plantação e a expansão territorial. A tensão entre as duas tendências antitéticas do esforço colonizador não se verificou apenas no conjunto da colônia mas também regionalmente, vale dizer, nos mesmos núcleos da economia de plantação. Estes haviam sido originalmente projetados segundo um modelo diferente de economia de plantação, o vigente na Madeira, o qual se caracterizara por um sistema misto em que o açúcar desempenhava o papel hegemônico mas não exclusivo; em que vigia a separação entre o lavrador da cana e o fabricante do açúcar; em que predominavam a pequena e a média propriedades; em que a escravidão africana estava longe de haver dominado a mão-de-obra agrícola ou fabril; e em que à etapa produtiva, eminentemente lusitana, antepunha-se a comercial, dominada por florentinos, genoveses e flamengos. Destarte, forjara-se na ilha uma paisagem agrária bem diferente da que o açúcar virá a criar nos espaços continentais do Brasil.

O boom açucareiro de finais de quinhentos promoveu a liquidação do modelo madeirense na mata pernambucana e no Recôncavo Baiano, estimulando a expansão territorial, que tornava disponíveis terras mais planturosas, encorajava a monocultura e viabilizava o recurso maciço à mão-de-obra servil, indígena e africana. O caso limite desse segundo modelo de economia de plantação é o das ilhas açucareiras do Caribe, em especial Barbados, onde, uma vez adotada a cana-de-açúcar, nos anos quarenta do século XVII, a grande propriedade, a monocultura e a escravidão varreram a pequena e a média propriedades, a policultura e o trabalho engajado. Se nossas áreas açucareiras não se transformaram em outros tantos Barbados, isto é, se o domínio da grande lavoura açucareira e da escravidão não atingiu entre nós o extremo a que chegou ali, isso se deveu sobretudo ao contrapeso da continentalidade brasileira, isto é, da oferta abundante de terras e da presença de população nativa, condições inexistentes em Barbados.

Em ambos os planos, no da colônia como um todo e no dos núcleos de economia de plantação, a expansão territorial trouxe o ensimesmamento. Ele caracterizou não só o bandeirismo no sul mas até mesmo a grande experiência cosmopolita da América portuguesa ao longo de seiscentos, a guerra holandesa no norte.

Não surpreende, assim, que date do terceiro decênio a redação do texto que, mais que nenhum outro, anuncia os novos tempos, a História do Brasil, de frei Vicente do Salvador, que, ao contrário dos cronistas que o precederam, era já nascido na terra. Detalhe igualmente significativo: ele concluiu sua obra precisamente nos anos que vão do ataque holandês a Salvador, repelido pela armada luso-espanhola, e a ocupação de Olinda, que abrirá um quarto de século de guerra e de ocupação estrangeira. A leitura da História do Brasil deixa perceber que os ventos começavam a soprar de outro quadrante. Se compararmos superficialmente o livro do francismo com as obras de Gândavo e de Gabriel Soares de Souza ou com os Diálogos das Grandezas do Brasil, a impressão inicial é a de um mesmo universo mental, repetindo-se a louvação da terra e dos seus principais núcleos demográficos. Na realidade, o tom mudou. Frei Vicente do Salvador proclama a vocação autárquica da colônia, sua capacidade de viver por si mesma, pois não somente possuía uma flora e uma fauna superior às de outras regiões do globo como também podia aculturar as alheias em condições mais vantajosas que as do próprio lugar de origem. Daí que se lhe deva o primeiro programa brasileiro de substituição de importações, programa que potencialmente constituía também a primeira contestação teórica do monopólio colonial; e que, suprema heresia cultural, deveria até memo liquidar a tríade canonicamente lusitana da mesa dos colonos acaudalados, trocando a farinha de trigo pela de mandioca, o vinho pela cachaça, o azeite de oliveira pelo de palmeira. Caberia, aliás, investigar a dívida ideológica em que está o moderno nacionalismo brasileiro para com o espírito de exclusão do antigo monopólio colonial português. No fundo, o brasileiro de hoje segue sonhando com a “ilha Brasil” do mito geográfico de origem indígena há muito estudado por Jaime Cortesão.

Mas não é só. Relativamente a Gabriel Soares e aos Diálogos, o texto do frade já respira o ressentimento e o pessimismo típicos do mazombo que ia ser parido ao longo deste seiscentismo, em cujo limiar ele escreve sua História. Frei Vicente não exprime se é que chegou a pensar esta idéia simples mas eminentemente subversiva e que é a idéia seminal do nativismo, pois vai levar a todas as outras que ele vai gerar: os interesses do colono português não são os de seu conterrâneo reinol. O tratamento dispensado pela metrópole já é criticado com visível amargura, sentimento eminentemente nativista. Os monarcas lusitanos, Aviz ou Habsburgo, fazem pouco caso de nós, com exceção de D. João III, e, podendo se intitular reis do Brasil, preferem chamar-se reis da Guiné, só por causa de uma mísera caravelinha que despacham anualmente para aquelas paragens do litoral africano. Tampouco premiam os serviços prestados pelo povoadores da América portuguesa. Graças a esse descaso, o Brasil, com menos de cem anos de colonização, já se despovoa em alguns lugares, e, malgrado sua grandeza e fertilidade, não progride, antes regride, pois o sentimento nativista é cego para os avanços atuais e prefere a ruptura para alcançar o futuro autonômico com que sonha. Por outro lado, esboçada nos Diálogos que ele pode ter lido no período em que viveu no claustro franciscano de Olinda, frei Vicente formula a oposição entre o comerciante, que queria apenas tirar proveito imediato da atividade, e o produtor, senhor de engenho ou lavrador de cana, que havia conquistado a terra com seu esforço e seu sangue, embora este tampouco escapasse à crítica de tudo pretender levar para Portugal ao cabo de muitos anos de trabalho.

Sob outro aspecto, frei Vicente foi o arauto do nosso “século de ferro”. Refiro-me à sua queixa, citada à saciedade, segundo a qual os colonos apegam-se às regiões litorâneas como se fossem caranguejos. Pois uma da formas que assumiu nosso ensimesmamento seiscentista em relação ao passado quinhentista consistiu precisamente na expansão territorial, de que o sertanismo foi a ponta de lança. Mas quando essa dilatação caótica e inorgânica ocorrer, ela pouco terá de impulso civilizador no sentido convencionalmente europeu, redundando, antes, na regressão cultural ao menos daqueles contingentes demográficos de origem européia que dela participaram, lado a lado com os efetivos, já nascidos na terra, que haviam resultado da miscigenação. Tampouco será o produto de uma explosão de vigor coletivo decorrente, como já se pretendeu, da hibridização, mas a triste saga de homens que, em última análise, não haviam podido encontrar seu lugar ao sol da ordem escravocrata. A expansão territorial que teve lugar ao longo de seiscentos, tanto no Estado do Maranhão-Pará como no interior semi-árido do Nordeste e no centro-sul, representou, no final das contas, a contrapartida do impasse vivido pelos núcleos litorâneos, na primeira metade do século, em função da guerra e da ocupação holandesa e, na segunda, da recessão duradoura causada pela concorrência do açúcar antilhano. Escusado aduzir que a introversão resultante da expansão territorial tinha ademais o efeito perverso de fazer o jogo do monopólio colonial, que era o de segregar o Brasil.

Nessa perspectiva, nossa louvada “marcha para o oeste” foi sobretudo o subproduto das dificuldades da economia escravista, a conseqüência patológica da tróica fatal que arrastou após si a história brasileira, a escravidão, a monocultura e o latifúndio. Com o século XVII, a colonização do Brasil inaugurou sua tendência a sacrificar de maneira sistemática, embora inconsciente, possibilidades alternativas de desenvolvimento no altar da continentalização e da criação de um “grande império”, de que se já se falava precisamente nos Diálogos das Grandezas do Brasil e que já está implícito na argumentação de frei Vicente sobre o caráter litorâneo da presença lusitana. Seria equivocado julgar que essa idéia do “grande Império” fosse apenas uma justificação ideológica, o outro nome para a busca dos metais preciosos que a terra encerraria em seus confins inexplorados ou para as expedições de redução de populações indígenas. É revelador que, quando esse projeto grandioso for reformulado em finais do século XVII e for executado a partir da instalação da Coroa no Rio de Janeiro, ele surgirá como uma reivindicação da colônia, mas como um plano eminentemente estatal e metropolitano inspirado por dom Rodrigo de Souza Coutinho no objetivo prioritário de restaurar a posição internacional de Portugal mediante o estabelecimento de uma entidade nacional plantada em ambos os lados do Atlântico e que libertasse o Reino da sua posição de refém do equilíbrio de poder europeu.

Mesmo a experiência eminentemente européia e cosmopolita do nosso seiscentismo, o Brasil holandês teve o efeito oposto de aprofundar o ensimesmamento colonial, estimulando-o, e de maneira sutil, mediante a confrontação das práticas metropolitanas e locais, especialmente as de guerra, e a resistência cultural e religiosa ao invasor. Não se trata certamente de acaso se o texto que primeiro afirmou a irredutibilidade da colônia ao emprego de modelos bélicos trazidos da Europa tenha sido uma defesa da “guerra volante”, isto é, da guerrilha, redigida em 1633 por um anônimo luso-brasileiro, irredutibilidade reiterada anos depois por outro veterano da guerra de Pernambuco. A ironia intrínseca ao elogio do domínio holandês feito pelo nativismo oitocentista, que se comprazia em atirar à cara do português o exemplo de uma colonização de tipo superior que teria feito o progresso material e moral do Brasil, consiste em que os ascendentes luso-brasileiros dos pernambucanos do século XIX haviam assumido uma atitude de inflexível rejeição a toda espécie de influência batava, impondo-se um aparteísmo destinado a impermeabilizar-se à convivência de estrangeiros, em que só enxergavam hereges.

Como no verso de Milton Torres da Silva, “tudesco tudo e tóxico / à lusa louçania nossa”, os luso-brasileiros encaravam invariavelmente suas relações com os neerlandeses em termos de uma incompatibilidade radical. Em vão Nassau acenou com o ideal de “um só povo”. Os ministros calvinistas reconheciam não colher qualquer fruto das suas pregações, devido ao temor da comunidade luso-brasileira à excomunhão pelo clero católico, donde serem nulas as possibilidades de conversão à religião reformada. Por outro lado, era impossível despertar interesse pelo estudo da língua holandesa, pois falar batavo era reputado meio caminho andado para a apostasia. Entre os colonos luso-brasileiros, era com dificuldade que se encontrava quem falasse holandês, nem sequer os colaboracionistas deram-se ao trabalho de aprendê-lo, mesmo se sua sorte dependesse da proteção do invasor. Os dominadores revelaram-se bem mais versáteis na língua dos dominados do que estes na daqueles. Muitas autoridades compreendiam ou falavam português, mercê dos seus conhecimentos de latim e de espanhol; Nassau mesmo entendia o português, embora se atrapalhasse para falá-lo. Graças ao conhecimento de ambas as línguas, os judeus de origem portuguesa, vindos de Amsterdã transformaram-se nos indispensáveis intermediários. Quanto às camadas subalternas, é revelador que os insultos trocados entre membros das duas comunidades o fossem freqüentemente num português estropiado.

Ao clero católico, coube desempenhar papel fundamental nessa estratégia de autoaparteísmo, em especial os capelães de engenhos, de vez que os luso-brasileiros insistiam em ensinar os filhos em suas casas. Criou-se assim uma situação sui generis na medida em que, por via de regra, é o dominado que aprende a língua do dominador. O domínio do idioma lusitano foi também poderosamente ajudado pela especialização econômica e espacial que segregou o meio rural, com os engenhos majoritariamente possuídos e administrados por luso-brasileiros, do meio urbano, onde a maioria da população era de origem estrangeira. Foi assim por trás da barreira lingüística que se defenderam e preservaram a religião católica, os costumes, a existência cotidiana, os estilos de vida privada, enfim, o que hoje se chamaria a “identidade nacional” da comunidade luso-brasileira. Para tanto, o campo contava com a inércia das suas distâncias, que operavam como outros tantos baluartes do casticismo lusitano. Anacronisticamente, o nativismo oitocentista veria na restauração pernambucana os pródomos da consciência nacional brasileira. Na medida em que ela constituiu uma manifestação da consciência nacional, da qual é difícil separar o que nela foi propriamente nacional do que foi especificamente religioso, a restauração pernambucana foi antes uma reação da consciência nacional portuguesa dos colonos do Nordeste, onde ela fora reavivada pela presença estrangeira e herética e pela recente restauração da independência do Reino. Só definitivamente expulso o invasor, é que o episódio passará a ser construído em termos do sentimento local.

Sem encorajar o uso da língua, a prática da religião e dos costumes batavos, não seria possível consolidar a conquista, mas o recurso a uma política cultural rigorosa, como queriam os predicantes calvinistas, era o mesmo que convidar o desastre. Nassau viveu esse dilema melhor que ninguém e em arras da segurança do Brasil holandês preferiu contemporizar. Uma política de força teria de começar pela prisão de todo o clero católico, “o que (escreveu) será o começo de uma ruína universal”. Seria inconveniente, ao menos por algum tempo, introduzir o calvinismo entre os luso-brasileiros e muito menos suprimir “seus ritos e cerimônias, pois nada há que mais os exaspere”. A administração tampouco se devia intrometer na administração do clero católico. E deflagrada a revolução luso-brasileira, houve quem sustentasse, como Nieuhof, que “os portugueses não pretendiam tanto provar a lealdade devida a seu rei quanto recuperar a liberdade de consciência”, recapitulando entre as causas do movimento “a diferença de religião, de língua e de costumes que os nossos quiseram introduzir, não obstante a sua fraqueza (numérica) relativamente aos portugueses”.

Os costumes luso-brasileiros, como o trabalho dos domingos, resistiram bravamente às pressões calvinistas, como no passado ocorrera com as autoridades católicas, que há muito haviam pragmaticamente fechado os olhos à prática dos engenhos de safrejarem ininterruptamente, de modo a concluir os trabalhos antes do fim do verão. A proibição do governo holândes do Recife foi ignorada e não havia como fazê-la obedecer, a não ser pela força armada e ao risco de acarretar distúrbio da ordem pública. O mesmo se verificaria no tocante à bênção da moagem no dia da “botada”, isto é, ao iniciarem-se os trabalhos de fabricação do açúcar. Os chefes da igraja calvinista indignavam-se com o fato de que até mesmo senhores de engenho neerlandeses tolerassem que sacerdotes católicos viessem praticar essas cerimônias, consentindo que tivessem lugar nos domingos, só por este ser o uso da terra. Os predicantes foram instruídos a exortar esses proprietários a seus deveres e o governo decidiu que, doravante, o serviço religioso fosse presidido não pelos padres católicos mas pelos ministros calvinistas, solução que tampouco será adotada, pois o pessoal luso-brasileiro das fábricas recusava-se a trabalhar, por temor ao castigo divino.

A resistência cultural também se manifestou agudamente no tocante à família. D. Ana Pais, pernambucana que se casara duas vezes com batavos, foi posta na rua da amargura pelos seus conterrâneos, que julgavam seu comportamento simplesmente inaceitável. Como revelam as pesquisas idôneas, os matrimônios mistos foram poucos e ocorreram sobretudo entre holandeses e luso-brasileiras, pois no dizer de uma fonte coeva, os luso-brasileiros não se interessaram pelas mulheres batavas, nem sequer para atividades extraconjugais. O modelo ibérico ou mediterrâneo das relações entre os sexos foi estritamente mantido contra os ventos e marés das novidades holandesas. Os costumes estrangeiros eram olhados pelos locais com a maior reserva, especialmente a liberdade feminina e a inclinação à bebida pela qual a Holanda já era conhecida e criticada em toda a Europa. A dipsomania batava provocava uma rejeição tanto mais espontânea quanto o português, como o espanhol, eram universalmente reconhecidos como abstêmios.

E a sobriedade alimentar dos luso-brasileiros era favoravelmente contrastada pelas autoridades holandesas com os excessos gastronômicos dos seus, num sentido surpreendente para quem associa protestantismo e sobriedade na vida material.

Devido a essa diferença, onde aqueles poupavam, estes se arruinavam.

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