A FEBRE DO OURO

A Febre do Ouro

Ainda que a literatura e o cinema brasileiros pouco tenham utiliza do a corrida do ouro de Minas Gerais como matéria-prima para um romance ou filme, a “auri sacra fames” que inflamou os espíritos foi admiravelmente descrita pelo jesuíta italiano João Antônio Andreoni em seu extraordinário “Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas”, escrito sob o pseudônimo de André João Antonil. Embora não tratasse apenas das minas (que só ocupam um quarto do livro e onde Antonil nunca esteve), o livro faz a mais vívida descrição delas. Lançado em 6 de março de 1711, foi proibido dez dias depois e teve sua primeira edição destruída. O livro só voltou a ser publicado em 1898, depois de Capistrano de Abreu ter descoberto que Antonil e Andreoni (nascido em Luca em 1649 e morto em 1716) eram a mesma pessoa. Quando “Cultura e Opulência do Brasil” foi lançado, as autoridades perceberam que o texto aumentaria o já incontrolável fluxo de migrantes. Pelo que escreveu, Andreoni sabia disso: “A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos, como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do mínimo das pessoas que atualmente lá estão. (…) Dizem que mais de 30 mil almas se ocupam, umas em catar, outras em mandar catar nos ribeiros do ouro; outras em negociar, vendendo e comprando o que se há mister não só para a vida, mas para regalo, mais que nos portos de mar. Cada ano vêm nas frotas quantidades de portugueses e estrangeiros. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, padres e clérigos”.

Graças ao relato minucioso de Andreoni/Antonil, sabe-se também como eram exploradas e distribuídas as minas. O ouro descoberto estava, de fato, quase que à flor da terra – em sua maior parte, foi explorado em aluviões, nas areias e cascalhos dos rios, “numa autêntica catagem, que só necessitava braço humano, sem jeito especial ou inteligência amestrada”. A legislação real estabelecia que aos descobridores de cada jazida cabiam duas datas (pequenas extensões de terra aurífera à beira dos rios) de 900 braças (4.356m2). Uma data do mesmo tamanho seria reservada à Coroa. Cada uma das demais datas, de dimensão igual àquela, seria repartida entre os minera­dores que possuíssem pelo menos 12 escravos. Aos mineiros com menor número de escravos eram entregues datas de 25 braças por escravo. Dispositivos legais posteriores dispunham sobre o direi­to dos mineradores ao corte de madeira e à repartição das águas. Quando a exploração se iniciava, os cursos dos rios eram desviados, separando-se trechos de seus leitos por uma ensecadeira. Cavadeira e almocafre eram os utensílios mais utilizados no desprendimento do cascalho, mas eram as bateias, as gamelas e os pratos os instrumentos finais para a “apuração” do ouro. De início, o grosso dos escravos levados às minas era de índios “domésticos” capturados pelos paulistas. Eles logo se finaram. Em março de 1709, d. João VI assinou um alvará “franqueando” o tráfico de africanos aos paulistas (até então limitado a 200 por ano). Em 1738, já 101.477 escravos labutavam nas minas.

“O trabalho da bateia e do carumbé, do almocafre e da pá foram operações que converteram o Brasil das minas em um superinferno de negros, perto do qual o dos engenhos e fornalhas de açúcar, por Antonil apontado, não passou de indulgente purgatório”, escreveu Afonso Taunay.

Cobiça e Contrabando

Como aconteceria um século mais tarde na Califórnia e, em segui da, no Alasca e na África do Sul, a região das Minas Gerais, logo após a descoberta do ouro, “constituía uma república onde o atrevi mento imperava armado e o direito vivia inerme”. A lei e a ordem levaram seis anos para se estabelecer no reino da cobiça. Nesse período – de 1694 a 1700 -, as fronteiras da civilização no Brasil eram percorridas “por homens de toda a casta e de todas as partes, gente de cabedais e aventureiros sem vintém, em número enorme: os primeiros, arrogantes e prepotentes, acompanhados por espingardeiros, violentos, vingativos, jogadores e devassos; os demais, em geral, vadios e ladrões inveterados, traidores e assassinos”. Quando o poder constituído enfim se estabeleceu nas “minas de Taubaté”, a figura escolhida para representá-lo não poderia ser pior. Artur de Sá e Meneses, ex-capitão-general do Maranhão, fora empossado como governador do Rio em abril de 1697. Em outubro do mesmo ano, foi a São Paulo (inflamada por uma guerra civil entre dois clãs rivais). Lá, além de perdoar Manuel de Borba Gato do assassinato de Rodrigo Castelo Branco, nomeou-o guarda-mor dos sertões mineiros (a nomeação só se tornou oficial três anos depois) e instigou os demais habitantes da cidade a “dar todo o calor à laboração das minas”. Entusiasmado pelo ouro que teria recebido de Borba Gato, Artur de Sá decidiu partir para Minas em agosto de 1700 e lá ficou até junho do ano seguinte. Em setembro de 1701, resolveu passar mais dez meses na região. Quando retornou ao Rio, em 12 de julho de 1702, trazia consigo 40 arrobas de ouro (cerca de 580 kg) “oferecidas” pelos mineradores. Ao embarcar para Portugal, em 1705, “arqui-satisfeito com o resultado das jornadas a que se abalançara”, o ex-capitão de infantaria tinha sé tornado “um dos sujeitos mais opulentos da monarquia”. As duas jornadas às minas, porém, haviam lhe debilitado de tal modo a saúde que, quatro anos mais tarde, Artur de Sá – chorado publicamente como uma “indeslembrável figura” – morria em Lisboa, sem deixar herdeiros.

A herança de Artur de Sá e Meneses fora a primeira legislação mineira aplicada aos fabulosos achados auríferos das Minas Gerais. Antes da descoberta, a disposição legal sobre a tributação do ouro se resumia às Ordenações Manuelinas, de 1532, estipulando que um quinto do minério extraído pertenceria à Coroa. Com a riqueza aflorando da terra e a dívida externa de Portugal sendo duas vezes superior a sua renda, as Minas se riam vitimadas por uma das mais absurdas e rigorosas taxas de tributação criadas até então. Aos mineradores não eram cobrados apenas os quintos, mas também “direitos de entradas” (sobre todos os produtos vindos de fora, em alguns casos até 75% do valor da mesma mercadoria no porto do Rio), “direitos de passagem” (espécie de pedágio cobrado nos rios), dízimos para a Igreja e o “subsídio voluntário” (criado pelo marquês de Pombal para ajudar na reconstrução de Lisboa depois do terremoto de 1755). Dos dízimos pagos pelos mineiros ao receberem suas datas provinham os ordenados dos superintendentes, guardas-mores, guardas-menores, oficiais e policiais que patrulhavam furiosamente a região das Minas. Todas as estradas, rios e passagens possuíam casas de registro e o ouro só podia circular em barras ou com uma guia. Ainda assim; calcula-se que pelo menos 35% do metal (cerca de 300 toneladas) ex traído da terra foi contrabandeado. A legislação mudou várias vezes (em 1701,1713,1715,1718,1719,1725,1730 e 1750). Em 1713, os minera dores ofereceram, em troca da suspensão do quinto, uma finta de 30 arrobas anuais à Coroa (baixada para 25 arrobas em 1718 e aumentada para 37 arrobas anuais em 1719). Mas em 1735, quando o governador Gomes de Freire quis estabelecer um imposto de 17 gramas por ano por escravo, os mineradores ofereceram uma finta de cem arrobas anuais para a Coroa. Mais do que o esgotamento dos veios, foi a tributação abusiva que provocou a decadência das minas, não sem antes ter feito eclodir, em Vila Rica, a Inconfidência Mineira.

O Ouro do Brasil em dados estatísticos

Total de ouro extraído de Minas: 874 toneladas em 80 anos (1700 a 1780).

Outras descobertas: Em Goiás, em 1727, pelo Anhanguera – essas minas renderam 160 toneladas – e em Mato Grosso, por Moreira Cabral, em 1729 -renderam 60 toneladas.

Conseqüências no Brasil: A mudança da capital de Salvador para o Rio, a ocupação de Minas, Goiás e Mato Grosso e a fermentação da independência.

Conseqüências em Portugal: A Coroa deixou de depender dos favores da corte, aumentando seu poder e independência internos. Externamente, após o Tratado de Methuen (1703), Portugal se tornou totalmente dependente da Inglaterra. Proibido de ter indústrias, o país cederia todo seu ouro em troca de bens manufaturados.

Quem mais lucrou no Brasil: O padre Guilherme Pompeu, “que às mi­nas jamais foi ter”, virou magnata ao se tornar fornecedor e banqueiro dos bandeirantes.

Quem mais lucrou em Portugal: Embora a riqueza das minas fizesse com que d. João V fosse chamado de “Rei-Sol português”, foi depois da morte dele, em 1750, e a conseqüente ascensão de d. José I, que chegou ao poder o homem que, politicamente, mais se beneficiou com o ouro brasileiro: o todo-poderoso marquês de Pombal.

O Distrito Diamantino

Como se todo o fausto e os favores que o ouro trouxera para a corte não fossem o bastante, em 1727 chegava a Portugal a notícia de que, nas fraldas do Serro Frio, num lugarejo conhecido por Arraial do Tijuco (hoje Diamantina), surgira uma grande lavra com os mais reluzentes diamantes. Dom João V exultou. Pelo reino todo se celebraram “festas esplêndidas, e te-déuns e procissões inumeráveis que extasiaram o povo português, por quadrarem à sua religiosidade. Para Roma remeteu o governo as primeiras amostras. Ações de graças solenes se deram ao Todo-Poderoso na capital do mundo católico. O santo papa, os cardeais e todos os monarcas da Europa felicitaram d. João V. Não se ocuparam os povos da terra com outro objeto e notícia. Dir-se-ia que se descobrira coisa que de via regenerar e felicitar o universo”.

No Tijuco, porém, a alegria duraria pouco. A política que Portugal instaurou no distrito diamantino seria das mais repressivas e opressoras da colonização européia na América.

A notícia oficial da descoberta dos diamantes foi feita uns dez anos após os primeiros achados. O lusitano Bernardo da Fonseca Lobo, que achou uma “faisqueira” em 1723, é tido como o primei ro descobridor, mas desde 1714 havia notícias do surgimento de diamantes e topázios. Assim que a riqueza do veio ficou evidente, Lisboa anulou to das as cartas de datas concedidas na região e declarou a extração de diamantes o mais absoluto monopólio da Coroa, constituindo o Distrito Diamantino, com sede no Tijuco.

Por quase cem anos, a Coroa manteve a zona diamantina na mais absoluta clausura, proibindo a presença de “negros e pardos livres, de desocupados ou pedintes”. Vendas e tabernas foram fechadas, comerciantes expulsos. Um estado policial se instalou na região. A situação permaneceu igual mesmo depois de 1740, quando a Coroa decidiu “vender” o direito de exploração a um contratante. O sistema perdurou por 30 anos e revelou-se mais eficiente: extraíram- se, então, 1.666.569 quilates das minas.

O Brasil jogou tantos diamantes no mercado europeu que o preço do quilate caiu 75%. Dos seis contratantes que detiveram o poder de explorar os diamantes, quatro caíram em desgraça depois que o marquês de Pombal assumiu o co mando da corte em Lisboa. Ao longo de sete décadas (de 1740 a 1810), o Brasil produziu cerca de 3 milhões de quilates. Mais de 10 mil escravos trabalharam nas minas -muitos deles, bem como vários “vadios” capturados na região, foram torturados até a morte sob a acusação (às vezes irreal) de roubo de diamantes.

Apesar da clausura medieval imposta às minas, em 1809 o viajante inglês John Mawe – geólogo diletante mas competente – obteve permissão para visitar o Arraial do Tijuco. Fez um relato detalhista e fluente. Junto com o clássico “Memórias do Distrito Diamantino”, escrito em 1868 por Joaquim Felício dos Santos, a “Viagem ao Interior do Brasil”, de Mawe, permanece como fonte fundamental para o estudo do reluzente e trágico período dos diamantes.

Xica da Silva

De todos os incríveis personagens forjados pela opulência de diamantina , talvez nenhum tenha sido mais extraordinário do que a ex-escrava Xica da Silva, também conhecida como Xica que manda. Amante do desembargador João Fernandes de Oliveira, sexto contratador dos diamantes – homem “rico como um nababo, poderoso como um príncipe e soberano do Tijuco”-, Francisca da Silva era filha de um português com uma africana e fora escrava de José Silva Oliveira (pai do inconfidente José Oliveira Rolim). Assim que foi libertada e se tornou amante do desembargador, Xica da Silva virou a pessoa mais in fluente do Tijuco. O marido mandava na cidade, e ela mandava no marido.

Xica da Silva ia à missa coberta de diamantes, acompanha da por 12 mulatas esplendidamente trajadas. “O lugar mais distinto do templo era-lhe reservado”, diz Joaquim Felício dos Santos, segundo o qual Xica era “alta, corpulenta, de feições grosseiras e cabeça raspada; não possuía graças, não possuía beleza, não possuía espírito”. O historiador nasceu 12 anos de pois da morte de Xica (ocorrida em 1796). Felício descreve também o “magnífico edifício em forma de castelo, com teatro particular, delicioso jardim de plantas exóticas, cascatas artificiais e um vasto tanque, com um navio em miniatura para oito ou dez pessoas” que João Fernandes – logo derrubado por Pombal fez construir para a amada

3 comentários em “A FEBRE DO OURO”

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