FREI CANECA E A ESCRAVIDÃO

CANECA
O eterno libertário Frei Caneca
Escrito por Hiram Fernandes de Lima

Diferentemente dos inconfidentes mineiros, homens inscritos no seu tempo, Joaquim do Amor Divino Rabelo teve visão de estadista e, de certa forma, antecipou a discussão dos direitos humanos

O homem Joaquim do Amor Divino Rabelo, Frei Caneca, figura ímpar de estadista, sobressai-se com a Confederação do Equador, nas vertentes federalista e nacionalista. Na primeira, resultante da pregação da autonomia regional, como um recurso para evitar o conflito de interesses, na segunda, traduzida na preocupação de quebrar todos os vínculos, que concorressem para a continuidade do domínio português ou que pudessem valer para o retorno do colonialismo, de que Pernambuco se libertaria, durante 72 dias, sem a existência de escravidão e escravos, enfim, uma pátria de homens livres. Daí, diferentemente do pensamento dos inconfidentes, a motivação libertária do Estado fomentou a contra-revolução.

Não obstante a versão da história dominante no senso comum o tenha como o maior herói de nossa nacionalidade, protomártir da liberdade e da democracia, o alferes Joaquim José (Tiradentes), na verdade, estava mais próximo das crenças e instituições do Antigo Regime português, do que da então popular doutrina liberal que afirmava, à moda de John Locke, a centralidade do trabalho livre como valor instituidor de práticas políticas e sociais. É preciso destacar que ficou acordado, na última reunião entre inconfidentes, que não se tocaria de imediato no problema da escravidão, sob pena de desestabilizar todo o sistema social da capitania, convicção partilhada decisivamente pelo alferes, o que se constitui em notável exemplo dos limites relativos à natureza da rebelião proposta.

Não é fortuito, em nosso entendimento, o fato de que alguns dos principais expoentes do movimento da Inconfidência Mineira fossem senhores de escravos e mineradores. Também não é fortuito que seja conhecida apenas uma vaga defesa da abolição – em uma suposta fala de Alvarenga Peixoto e do padre Carlos Correia de Toledo e Melo, ambos se expressam por posições e motivação meramente estratégicas. Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga, Inácio José de Alvarenga Peixoto foram, além de poetas, bacharéis em Direito e gestores efetivos de um poder organizado em bases elitistas e estamentais até, praticamente, às vésperas do levante. O padre Carlos Correia de Toledo e Melo, o cônego Luiz Vieira da Silva e o padre Manuel Rodrigues da Costa, ao lado dos estudos e das atividades intelectuais laicas pelas quais foram notabilizados, não se eximiram de propagar e defender aspectos obscurantistas e preconceituosos da doutrina religiosa então em vigor. O alferes Tiradentes, militante da tropa regular, tampouco se eximiu de exercer com zelo as atividades de controle da população, incluindo a repressão aos negros e índios que insistiam em não reconhecer em sua plenitude da “louca”, porém augusta soberana D. Maria I sobre Minas Gerais.

Figuras hoje populares e profundamente arraigadas no imaginário nacional, os inconfidentes de Minas foram, antes de sua conversão em mitos, homens inscritos em seu tempo. Frei Caneca foi um pernambucano autêntico, sempre coerente com o seu ideal cívico republicano e nacionalista, pela fidelidade à causa abraçada e pela soberana altivez diante da derrocada da revolução esmagada e cruelmente punida. É na derrota quando sua figura eleva-se às culminâncias do heroísmo, só não sendo fixado na história brasileira dos patriotas maiores, por interesse e má vontade da historiografia tradicional.

Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei Caneca, não pode ser analisado unicamente como um homem de ação, sua figura se eleva como pensador e pesquisador, como político e literato, com obras traduzidas em francês e inglês, sem olvidar sua marcante atuação no campo jornalístico com o Typhis Pernambucano, o combativo semanário que fundou, redigiu e dirigiu para sustentar a luta da província contra as pretensões do absolutismo imperial.

Creio que, é uma opinião meramente pessoal, se Frei Caneca tivesse se dedicado à vida sacerdotal, o revolucionário e patriota seriam sufocados, presos por um sistema religioso tradicionalista e vinculado ao Estado monárquico – agir diferente é uma demonstração inequívoca de sua independência, doutrinando todos no ideal da liberdade, da justiça e de todos os deveres do homem e do cidadão. É a visão do estadista e pensador, antecipando-se no tempo, na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.

Em sua análise da Inconfidência Mineira, sob o manto do esquecimento, ditado pela Casa Real portuguesa, Frei Caneca superou as dificuldades de seu tempo, como jornalista e escritor, estudou as causas com base em pólos como elite versus povo, revolução versus reforma, interesses públicos versus interesses privados – sempre referidos ao movimento como um todo. Em seu drama, sofreu, pior que fuzilamento, o sacrifício da degradação eclesiástica, punição que expressa o sentimento da vingança e baixezas de bajulação ou de submissão, na preocupação de atender ao imperador, ferido na onipotência de seu absolutismo. A comissão militar, num regime de igreja oficial, tomava a iniciativa de condená-lo à degradação, incluída entre as “penas vindicativas do Direito Canônico”, como se o crime de lesa-majestade se transformasse em sacrilégio, em face de um sacerdote, que era professor conspícuo do Seminário de Olinda. Na degradação, injusta, ilegal e desumana, foi que Joaquim Caneca revelou a grandeza de sua alma.

Frei Caneca foi a razão e a melhor opção. É, inquestionavelmente, um homem acima de seu tempo, o estadista e o herói, o precursor da lutas libertárias brasileiras, que precisa ser redescoberto em nome da verdade e da História.

8 comentários em “FREI CANECA E A ESCRAVIDÃO”

Obrigado pela sua participação!

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.