OS ÍNDIOS BRASILEIROS VISTOS POR UM EUROPEU NO SÉCULO XVI: MICHEAU DE MONTAIGNE

n Janeiro/Junho de 2002
Conc. João Pessoa, v.5, n 7, p.1-188 Jan./Jun. 2002 CONCEITOS
Os índios Brasileiros

José Alexandrino de Souza Filho
Professor da UFPB, doutorando em Literatura Francesa na
Université Michel de Montaigne (Bordeaux 3).
Vistos por um Europeu do Século XVI: Montaigne, os Canibais e a Literatura

A descoberta da América não
foi apenas um acontecimento que
mudou definitivamente a representação
geográfica do planeta; foi
também uma revolução na mentalidade
européia, pois o encontro
com os índios deu nascimento a
uma rica literatura de idéias que
tinha, entre outros objetivos redefinir
os princípios de organização
social na Europa. O primeiro livro
a tratar dessa questão foi a Utopia
(1516), de Thomas Morus (1478-
1535).
Um dos responsáveis pela
mudança na maneira de compreender
a diversidade cultural humana
foi o escritor francês Michel de
Montaigne (1533-1592), autor de
um dos livros mais singulares da
literatura ocidental : os Ensaios
(Les Essais), lançados em 1580
(dois volumes) e 1588 (um terceiro
e último volume). Além de escritor
e filósofo, Montaigne foi um
Índios Pataxó dançam na praia de Mutari, em Santa Cruz Cabrália. Reprodução – Foto: Valter Pontes
importante personagem da vida política
francesa do século XVI, tendo
sido prefeito de Bordeaux por duas
vezes (1581-1585). Um dos capítulos
mais famosos do seu livro interessa
particularmente ao Brasil, pois
« Dos Canibais » (Livro I, capítulo
31) trata exclusivamente dos índios
brasileiros.
Foi na França, graças sobretudo
a Montaigne, que nasceu o mito
litérario do bom selvagem, ou seja,
a idéia, segundo a qual, o homem
natural vivia melhor que o homem
civilizado, pois era livre, saudável e
entretinha relações de igualdade
social com seus semelhantes. O mito
do bom selvagem, por sua vez, não
é senão uma atualização feita no século
XVI, possível, graças às descobertas
marítimas, de outro velho
mito herdado da Antigüidade grecolatina:
o mito da idade do ouro, ou
seja, o período da humanidade em
que os homens viviam segundo as
leis da natureza, em harmonia com
os outros animais e em fraternidade
com seus semelhantes. Esse mito
pode ser verificado em poetas como
Virgílio e Ovídio ou em filósofos como
Platão e Aristóteles.
Antes de Montaigne escrever
sobre os índios brasileiros, a baía de
Guanabara já tinha sido francesa,
entre 1555 e 1560, com a instalação
da França Antártica, colônia de
refugiados protestantes determinada
a preparar a ocupação francesa
da América do Sul, à semelhança da
tentativa posterior na Flórida (1562-
1565). A malograda experiência deu
occasião à publicação de dois dos
primeiros livros sobre o Brasil : Singularidades
da França Antártica
(1557), do frade e cosmógrafo André
Thevet (1516-1592), e História
de uma viagem feita à terra do Brasil
(1578), do pastor protestante
Jean de Léry (1534-1613). Esses livros,
sobretudo o último, apesar de
condenar vários costumes, como a
poligamia e o canibalismo, não deixam
de exprimir uma certa simpatia
pelo caráter comunicativo e sociável
dos índios brasileiros. Foi desses livros
que Montaigne colheu a maior
parte das informações sobre a vida
dos Tupinambá, embora ele diga que
elas proviam de um empregado seu,
ex-marinheiro da expedição de Villegagnon,
o fundador da França Antártica.
O ensaio de Montaigne tornou-
se legendário sobretudo pela
narração da « visita » dos canibais
brasileiros à França; o escritor relata
uma suposta conversação entre
os índios e o rei Charles IX, por intermédio
de um « truchement » (intérprete);
o encontro teria se dado
no ano de 1562 em Rouen, cidade
conhecida por ser um grande porto
comercial de onde partia boa parte
dos navios que fazia contrabando de
pau brasil; após terem conhecido a
bela capital da Normandia, com sua
famosa catedral e seus belos edifícios
públicos, alguém teria perguntado
qual impressão essa visita teria
deixado neles; eles teriam então respondido
que duas coisas lhes haviam
chamado a atenção: 1) que os
homens daquele país eram governados
por uma criança (Charles IX
tinha então 13 anos); no país dos
canibais, acontecia o contrário; 2)
que houvesse naquela cidade tanta
desigualdade entre as pessoas, uns
vivendo em palácios, outros mendigando,
passando fome e frio; no país
dos canibais, uma situação como
essa seria intolerável. Eles teriam
acrescentado: como pode ser que os
necessitados aceitem tamanha injustiça
e por que não se revoltam, pondo
fogo naquelas luxuosas mansões?
Alguns críticos conhecedores
das astúcias de Montaigne já haviam
assinalado que tudo não passava
de invenção do escritor, que teria
criado o diálogo e posto na boca dos
canibais brasileiros idéias que ele
queria passar (a relatividade dos
costumes e a injustiça social), mas
que não podia reivindicar como suas,
porque eram subversivas. É o caso
do estudioso americano Geoffroy
Atkinson (Les nouveaux horizons de
la Renaissance française, Paris,
1935) e do brasileiro Afonso Arinos
de Melo Franco (O Índio brasileiro e
a Revolução francesa, Rio, 1937). A
afirmação carece, porém, de sustentação
histórica; trata-se, na verdade,
de uma intuição baseada na convicção
de que uma leitura ao pé da
letra só pode ser ingênua, em se tratando
de Montaigne. Eles tinham
razão. Entretando, os biógrafos bem
como a crítica montaigniana ainda
aceitam a idéia de que o suposto
encontro se deu em Rouen, nas circunstâncias
às quais Montaigne faz
alusão.
A pesquisa feita no Fundo Patrimonial
da Biblioteca de Bordeaux
(onde se encontra o famoso « Exemplar
de Bordeaux », ou seja, uma
edição dos Ensaios de 1588, anotada
e corrigida pelo próprio Montaigne),
nos leva a concluir que a biografia
do escritor deve ser corrigida
nesse particular, pois o encontro não
se deu em Rouen, mas em Bordeaux
mesmo, cidade onde ele residia;
tampouco foi em 1562, mas três
anos depois, mais exatamente no dia
9 de abril de 1565, quando Charles
IX fez sua entrada real.
Antes de Montaigne
escrever sobre os índios
brasileiros, a baía de
Guanabara já tinha sido
francesa, entre 1555 e
1560, com a instalação
da França Antártica,
colônia de refugiados
protestantes (…)
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CONCEITOS Conc. João Pessoa, v.5, n 7, p.1-188 Jan./Jun. 2002
Vejamos os fatos. O encontro
não poderia ter se dado em Rouen,
posto que a cidade estava sitiada
pelos protestantes; ela só foi liberada
no dia 26 de outubro de 1562,
quando Charles IX e sua mãe Catherine
de Médicis restabeleceram o
poder secular e a confissão católica
da monarquia; houve uma grande
procissão religiosa em comemoração
à vitória sobre os protestantes (conforme
diz um documento dos arquivos
da Catedral de Rouen); não houve
festas porque a cidade estava em
ruínas, em razão dos conflitos entre
o exército real e os sitiados huguenotes.
Montaigne sugere, porém,
que o encontro teria acontecido durante
uma entrada real, pois ele fala
da « pompa » e das « maneiras »
que a corte francesa teria feito questão
de mostrar aos canibais brasileiros.
Quando se estudam as entradas
reais francesas do século XVI,
percebe-se, porém (conforme atestam
os Registros Secretos do Parlamento
de Bordeaux), que um procedimento
característico da preparação
das festas põe por terra a segunda
« observação canibal » (a que
trata da justiça social), pois, antes
da chegada do rei, as cidades evacuavam
extra muros seus mendigos,
desocupados e prisioneiros. Tratavase
de apresentar-se à corte da maneira
mais faustuosa e bela, e as cidades
não economizavam dinheiro
na organização de espetáculos ao ar
libre, na confecção de luxuosas roupas
e na fabricação de engenhos
mecânicos que serviam de suporte
à representação de alegorias vivas
inspiradas da mitologia greco-latina
exaltando a figura do rei. Não havia
mendigos nas cidades que pudessem
inspirar as « observações canibais ».
Alguém poderia objetar, dizendo:
por que então Montaigne teria
trocado Bordeaux por Rouen,
uma vez que não havia mesmo mendigos
em nenhuma das duas cidades
por ocasião da entrada real ? A
resposta é simples: para fazer valer
a primeira observação que ele pôs
na boca dos canibais de que na França
a maior autoridade era uma criança
; fazendo a ação do seu « conto
» se passar em Rouen, quando o
rei era, de fato, pela lei, de menor,
ele dá lógica à sua fabulação; o
mesmo não poderia acontecer se ele
pusesse a ação em Bordeaux, pois,
em 1565, Charles IX era considerado
como um adulto, já que a maioridade
dos reis se atingia, à época,
aos 14 anos. Ele queria mostrar aos
seus contemporâneos o quão absurdos
são nossos próprios costumes
(vistos pelos olhos de um estrangeiro)
e que não há razão de espantarse
com os de outros povos, mesmo
que eles nos pareçam bizarros.
A entrada de Charles IX em
Bordeaux fornece os elementos que
Montaigne usou na criação do seu
« conto cannibal ». Pelo menos quatro
testemunhos, extraídos de documentos
da época, registram a presença
de doze grupos de estrangeiros
que desfilaram, junto com os representantes
da sociedade civil, em
homenagem ao rei; Dentre eles, três
«nações» de índios: os «Canibais»
(do Nordeste brasileiro), os «Marjagá
» (Tupiniquins, aliados dos portugueses
e inimigos dos franceses) e
os «Tupinambá» (do Sudeste brasileiro,
especialmente do Rio de Janeiro).
O chefe de cada grupo faz,
graças a um intérprete, uma «harenga
» (discurso laudatório) a Charles
IX. Montaigne transforma esse
fato na «conversação» do rei com
os canibais. O exórdio (abertura) do
ensaio foi tirado da «mercuriale»
(espécie de reprimenda moral) pronunciada
no dia 11 de abril pelo
Chanceler Michel de L’Hospital, no
Parlamento de Bordeaux, e dirigida
às facções que teimavam em opôr
resistências ao cumprimento das
deliberações do rei; Montaigne estava
presente, pois ocupava o cargo
de conselheiro naquele Parlamento.
Segundo a lógica do ensaio de « maquiar
» as circunstâncias históricas
às quais faz referência, Montaigne
foi buscar em Plutarco as mesmas
palavras ouvidas da boca de
L’Hospital, de quem era amigo e a
quem dedicou a publicação dos Poemata
(1570) do seu inesquecível
amigo Etienne de La Boétie. Outras
passagens, como a alusão ao constante
movimento das areias do Médoc
(região próxima a Bordeaux),
foram extraídas do livro Antiquités
de Bordeaux, escrito e oferecido a
Charles IX por Elie Vinet, diretor do
famoso Collège de Guyenne, onde
Montaigne estudou. É provavelmente
a Vinet que Montaigne faz alusão
quando estabelece uma diferença
qualitativa entre dois métodos «etnográficos
»: o «topográfico» (detalhista
e profundo) e o «cosmográfico
» (generalista e superficial). Vinet
é o autor de um tratado de topografia
(L’Arpenterie, 1572), publicado
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pelo mesmo editor de Montaigne,
Simon Millanges, onde ensina a desenhar
mapas e calcular dimensões
geográficas. Um enigma ainda resiste
à exegese crítica: a famosa canção
da serpente (couleuvre), que
Montaigne alega como exemplo dos
dotes poéticos dos índios brasileiros.
Trata-se, provavelmente, de uma
canção de gesta extraída de algum
romance de cavalaria, mas a fonte
ainda permanece não identificada1.
Muito mais do que uma simples
correção de data e de lugar, o
importante está no fato de que os
documentos históricos levantados
mostram a maneira como Montaigne
ficcionalizou a história da qual
foi testemunha e apontam para um
aspecto ainda pouco estudado da
sua obra: os Ensaios não são apenas
o produto do julgamento do
autor sobre a matéria do mundo e
dos homens, nem somente a escritura
subjetiva de um «eu» que se
busca: o «conto canibal» nos ensina
que há também ficção, no sentido
moderno da palavra. Essa ficção,
porém, não é puramente imaginativa
ou arbitrária. Ela se apresenta
como uma transformação de
fatos reais aos quais o escritor confere,
graças a sua imaginação, um
novo sentido, portador de uma
mensagem que ele deseja passar
1 Essa canção, que foi traduzida e adaptada à fauna brasileira por Waly Salomão sob o título de “Cobra Coral”, foi musicada por Caetano Veloso
e incluída no disco Noites do Norte (faixa 8). Porém, no encarte que acompanha o CD, não foi feita a devida referência ao original de Montaigne.
ao seu leitor. O «conto cannibal» é
um bom exemplo daquilo que já foi
chamado da arte do blefe em Montaigne.
Ele próprio parece definí-la
ao dizer, num ensaio não por acaso
chamado «Da força da imaginação»
(Livro I, capítulo 21):
«No estudo que faço de nossos
costumes e maneiras, os testumunhos
fantasiosos, desde que possíveis,
servem tanto quanto os verdadeiros.
Ocorrido ou não ocorrido,
em Paris ou Roma, com João ou Pedro,
trata-se sempre de um feito da
capacidade humana, sobre a qual a
história utilmente me ensina. (…) Há
autores cujo fim é dizer os fatos. O
meu, se fosse capaz de tanto, seria
dizer o que pode acontecer. Dos
exemplos que tiro daqui, das coisas
que ouvi, fiz ou disse, proibi-me de
ousar alterar até mesmo as mais insignificantes
e inúteis circunstâncias.
Minha consciência não falsifica nem
uma vírgula; minha ciência, não sei.».
sugestões
1) ATKINSON, Geoffroy. Les nouveaux horizons de la Renaissance
française. Paris: Droz, 1935.
2) DE MELO FRANCO, Afonso Arinos. O Índio brasileiro e a Revolução
francesa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1973 (2ª
edição).
3) MONTAIGNE, Michel de. Ensaios (3 volumes). Brasília: Hucitec/
UnB, 1987. Tradução de Sérgio Milliet.
de leitura
(…) Há autores cujo
fim é dizer os fatos.
O meu, se fosse capaz
de tanto, seria dizer
o que pode acontecer.
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15 comentários em “OS ÍNDIOS BRASILEIROS VISTOS POR UM EUROPEU NO SÉCULO XVI: MICHEAU DE MONTAIGNE”

  1. não ajudo no meu trabalho , que merda seus pau no cú …..
    odeio vcs que criaram esse site , é uma porcaria….

    vão toma no meio do cú de vcs….

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  2. Quem diz que é grande e cansativo é porque já se encontra com o vírus comodista da mídia televisiva aonde tudo é rapido e direto mas sem conteúdo. E aquelas que utilizam de blasfêmia em seus argumentos, bem o que se pode dizer para alguém que só se interessa por orações curtas e sem significado? Nada

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  3. O texto é interessante até o momento de entrar em detalhes e questões que não estão de acordo com as propostas e com a rapidez do mundo virtual. Mas para que a grosseria desses internautas mal educados. E, atenção, o rei era “de menor” não dá né professor.

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  4. Concordo com o Max. O brasileiro é mal informado, por preguiça de ler … analfabeto em informação. Leitura é conhecimento, é cultura .. Quem não lê, não eleva o seu conhecimento; então como pode criticar e manifestar a sua opinião? Cresça!

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